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Por Valerio Fabris

Foto: Agência Brasil

A imagem do dono de bar ou boteco ainda continua residualmente associada, na mente de alguns estratos da população brasileira, a um lugar socialmente desqualificado. É uma visão pejorativa que, de modo lento, começou a melhorar em 2001. O ponto de inflexão ocorreu a partir do momento que os estabelecimentos foram estatutariamente incluídos no rol dos negócios representados pela Abrasel.

Sete anos depois, a entidade passou a realizar o Festival Bar em Bar. Em sua edição de 2019, antes da pandemia, abrangeu 300 bares de 25 cidades brasileiras. O evento valoriza o convívio e a cozinha dos bares. Durante a sua realização (neste ano, de 27 de outubro a 13 de novembro), os bares apresentarão receitas diferentes das já incluídas no cardápio. Algumas seccionais da Abrasel realizam o festival no formato de concurso, elegendo-se os que ofertaram os melhores petiscos.

Outra frente vem, do ano 2000 em diante, ajudando a desmontar o preconceito em relação aos bares de portas abertas às calçadas. É o concurso Comida di Buteco, que nasceu em Belo Horizonte e se espalhou por todo o país. Desde 2016, no concurso elege-se o ‘Melhor buteco do Brasil’. Um dos fundadores do evento, Eduardo Maya, diz que esse sentimento refratário à sociodiversidade ainda existe, mas está em declínio.

Os ‘botequineiros’ arregaçam as mangas e ralam na linha de frente, como se estivessem em uma obra

Nos botecos, os donos costumam exercer múltiplos afazeres, desde receber e servir aos clientes, descarregar mercadorias, limpar as mesas, e até - se preciso for -, varrer as calçadas. Costumam ter nos cardápios pratos e tira-gostos de raízes caseiras. A ampla visibilidade dos bares (e/ou botecos) confere aos seus proprietários e funcionários um contraponto ao comportamento social de parcela dos brasileiros situados nos estratos de renda média para cima.

Nos países que alcançaram maiores índices de desenvolvimento humano (IDH) é natural que integrantes das famílias de quaisquer níveis de renda cortem a grama do quintal, pintem ou consertem a fachada das casas e retirem a neve do acesso às suas moradias. Porém, no Brasil, costuma ser estranho aos olhos dos passantes que alguém da vizinhança pegue na vassoura para varrer a calçada em frente à sua habitação.

Segundo a escritora e antropóloga Lilia Schwarcz, há no Brasil um disseminado preconceito em relação ao trabalho manual. É esta uma herança cultural dos tempos coloniais de um país que teve a maior e mais longeva escravidão mundial de africanos. O trabalho manual ainda hoje é visto como socialmente inferior, por ser considerado como coisa de escravizado. O mesmo se aplica ao ato de servir. O preconceito é uma construção social, em que uma pessoa diminui a outra.

Quanto mais bares houver nas ruas do Brasil, mais se espalha no país a diversidade social e se naturaliza o servir ao outro

Os bares e botecos com mesas nas calçadas acabam tornando-se referências do que deveria ser uma sociedade de convívio mesclado na diversidade social e econômica. “A convivência diária entre as pessoas que são diferentes entre si é o primeiro movimento para se romper com o racismo e com todas as formas de preconceito”, afirma Paulo Solmucci, presidente da Abrasel.

O número de brasileiros vítimas do preconceito social, segundo pesquisa do Datafolha realizada em janeiro de 2019, corresponde a 30% da população. Essa forma de preconceito em relação aos outros tem como fontes de desprezo as aparências o vestir, o lugar em que moram, o vínculo com religiões afro-brasileiras e neopetencostais, o nível de cultura e educação formal. Trata-se de um conjunto de preconceitos que se acumulou no país como consequência do legado escravocrata. Diz Lília Schwarcz:

“O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Tardou demais. As estatísticas oscilam, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade absoluta de africanos obrigados a deixar o continente. E teve escravos em todo o seu território, diferente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo semelhante ao nosso, mas no Norte tinha outro modelo econômico”.

Embora o preconceito social ainda esteja no dia a dia do país, o Brasil pode se orgulhar de sua ampla diversidade étnica

Os primeiros escravos teriam desembarcado no Brasil, conforme os relatos históricos mais frequentes, em 1538. A escravidão durou até 1888, portanto três séculos e meio. O mais destacado abolicionista, Joaquim Nabuco (1849-1910), antevia que poderia ser abolida a escravidão, mas duraria muito tempo para se abolirem os efeitos dela. Escreveu ele no livro Minha Formação: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”.

Diz o presidente da Abrasel, Paulo Solmucci: “Embora o país ainda tenha que caminhar bastante até que alcance a plena democracia nas relações sociais, o fato é que dispomos de uma imensa vantagem sobre outras nações. Temos uma enorme mescla na genética humana, como se veem nos cafés, bares e botecos de todo país. Quanto mais lanchonetes, cafés, bares e botecos tivermos, maior será essa interação. Somos uma ativa plataforma de avanço da democracia brasileira”.

A mescla étnica no país é reconhecida pela comunidade científica nacional. “O Brasil é provavelmente o país com maior miscigenação no mundo”, afirmou a cientista e professora da USP, Lygia da Veiga Pereira, à agência de notícias alemã DW (Deutsche Welle). Ela é autora dos seguintes livros: ‘Células-tronco, promessas e realidades”, e ‘Sequenciaram genoma humano, e agora?”. A identidade nacional tem acentuados tons da mestiçagem de brancos, índios, pretos e asiáticos.

As variadas etnias transmitiram suas influências de origem na gastronomia, música, linguagem e nas artes plásticas

A diversidade étnica e cultural acabou enriquecendo a produção nacional nos campos das artes plásticas, da música, dos esportes, da gastronomia e até na linguagem. Ao idioma português incorporou-se um rol de palavras de origem africana (p. ex: caçula, cafuné, capanga, cochilar, quitanda, tanga, farofa, acarajé, bobó, fubá, moqueca, quitute).

Dos índios, vieram p.ex: carioca, mingau, peteca, tamanduá, catupiry, pipoca, capim, tocaia, abacaxi, cajá, jenipapo, maracujá. Dos franceses: filé, boné, moda, vitrine, maquete, avenida, garagem, creche,charrete, marrom, guidom, metrô, chefe, avalanche, garçom. Dos árabes: alambique, alfaiate, alfândega, alfazema, açúcar, azulejo, café, armazém, chafariz, enxaqueca.

O Brasil é cada vez mais mestiço e híbrido na vida cotidiana. Uma amostragem é o sincretismo gustativo do chef Alex Atala, combinando a tradição gastronômica europeia com ingredientes nacionais. Entre as suas inéditas combinações, está a de se colocar no mesmo prato os cogumelos morilles (muito apreciados na França) e a pupunha, que é o fruto da palmeira “gulielma speciosa’, largamente distribuída na floresta amazônica.

A permeabilidade e a porosidade são a genuína marca de um país versátil, que acrescenta ingredientes vindos de fora à sua arte de raiz. É o caso do samba, a mais autêntica música brasileira. Sem perder sua clara identidade nacional e os valores culturais da origem negra, acabou recebendo alguma influência de fora, misturando chiclete com banana. Quando tinha 23 anos de idade, em 1922, o flautista Pixinguinha apresentou-se em Paris com o seu conjunto ‘Oito Batutas’, em uma temporada no dancing Les Shéhérazade, na rua Faubourg Montmartre.

Ele voltou ao Brasil com um saxofone. Colocou o instrumento a serviço do choro e do samba. Como relatou João Marcello Bôscoli, no seu programa radiofônico ‘Sala de Música’, (na CBN), Pixinguinha passou a ser acusado de ‘jazzista’ e ‘americanizado’. Mas, antes de viajar a Paris, ele já havia composto um dos seus maiores sucessos, a música ‘Carinhoso’. O comentarista da CBN observou que “a sequência de acordes escolhida para ‘Carinhoso’, era uma sequência de acordes no jazz, que o artista juntou ao choro brasileiro".

Os bares, botecos e restaurantes promovem a mistura humana, normalizam o trabalho braçal e são o ponto de encontro dos criadores da cultura do país

Os bares, botecos e restaurantes são locais em que publicitários, artistas plásticos, escritores, arquitetos, jornalistas e músicos arejam a mente, renovando o poder da criação. Tornou-se um lugar comum dizer que Tom Jobim e Vinícius de Moraes compuseram ‘Garota de Ipanema” no bar Veloso, do Leblon. O jornalista e escritor Ruy Castro diz que que essa história é falsa. Explica por quê. “Tom e Vinicius eram homens sérios: iam ao bar para beber, não para trabalhar”.

Há botequins, como escreveu Ruy Castro, que “são tombados, ou porque sua arquitetura neoclássica ou art déco merece preservação ou porque, de tão antigos, detêm uma parte da longa herança histórica e cultural da cidade”. Diariamente, Pixinguinha ia ao Bar da Portuguesa, a cem metros de sua casa, no bairro carioca de Ramos, onde, frequentemente, se encontrava com o amigo Baden Powell. Pixinguinha faleceu aos 76 anos de idade, em 17 de fevereiro de 1973. Em novembro do ano passado, o Bar da Portuguesa tornou-se Patrimônio Cultural do Rio.

A celebração do Bar da Portuguesa como Patrimônio Cultural do Rio teve as presenças, em Ramos, do prefeito Eduardo Paes, do subprefeito da Zona Norte, Diego Vaz, e do secretário municipal de Cultura, Marcus Faustini. Desde 2010, a prefeitura do Rio, conforme noticiou o jornal O Globo, contempla bares e botequins como patrimônio imaterial, na categoria atividade econômica tradicional e notável. Já fazem parte da galeria dos bares homenageados, entre outros, os seguintes estabelecimentos: Casa Paladino, Nova Capela, Bar Adonis e Adega Pérola.

Entre as motivações para a inclusão do Bar da Portuguesa no rol dos culturalmente mais notáveis bares da cidade estão “a tradição de 53 anos de existência, a honra de ter acomodado em suas mesas Pixinguinha e o violonista Baden Powell (1937-2000), outro ícone da canção, e os encantos da cozinha portuguesa”.

A presidente do órgão municipal Instituto Rio Patrimônio da Humanidade, Laura Di Blasi, disse no evento da chancela ao Bar da Portuguesa: “Os bares e botequins são tradicionalmente reconhecidos como locais de convivência democrática, que traduzem o espírito festivo carioca. Este circuito tem o objetivo de divulgar e informar sobre esse rico acervo de bens culturais existentes na cidade”.

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